"A arte não salva o mundo, mas pode apontar caminhos"

"A arte não salva o mundo, mas pode apontar caminhos"

É uma das mais emblemáticas obras orquestrais de sempre, mas também uma das mais complexas. A 9ª sinfonia de Beethoven sobe amanhã ao palco do grande auditório da Gulbenkian, dirigida pelo maestro Pedro Amaral. O objetivo é celebrar os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Não espera da música, por melhor e mais bem interpretada que seja, o antídoto contra os males do mundo, mas acredita na força persuasiva do seu exemplo. Afinal, o que aconteceria a uma orquestra que, em determinado momento da sua vida em comum, abdicasse da fraternidade em prol dos egoísmos individuais? É com base nesta convicção íntima que o maestro (e compositor) português Pedro Amaral subirá esta quinta-feira, 7, ao palco do grande auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, para dirigir, pela quinta vez na sua carreira, a 9ª Sinfonia de Beethoven. Mas, desta feita, o propósito que o anima, para além da excelência musical, é assinalar os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Tudo começou há alguns meses, quando Pedro Amaral, antigo aluno de Fernando Lopes Graça e Emmanuel Nunes, hoje ele próprio professor da Universidade de Évora, propôs ao Governo Português celebrar desta forma a data, que considera "imprescindível nos tempos que correm, com o mundo devastado por conflitos sem fim à vista e com o avanço imparável dos extremismos."

A escolha da derradeira sinfonia de Ludwig van Beethoven para assinalar tão importante efeméride reside na própria história da obra, como nos conta Pedro Amaral: "Foi composta na primeira metade da década de 1820 e a sua estreia, a 7 de maio de 1824, teve um impacto fortíssimo, na crítica, no público e no meio musical: logo após a estreia, Franz Schubert, o grande herdeiro de Beethoven, cita o Hino à Alegria na sua própria 9ª Sinfonia; e o legado da obra de Beethoven será determinante ao longo do século XIX, da França de Berlioz à Áustria de Gustav Mahler."

O impacto político, como explica, não foi menor: "A 9ª Sinfonia aparece associada às revoluções europeias de meados do século XIX, designadamente na Saxónia, com a tentativa de promulgação da primeira Constituição germânica, em 1849. Um dos vultos da conflagração revolucionária foi Richard Wagner, que dirigiu a obra num emblemático concerto, num contexto de intensa agitação política, na presença de Bakunin. E assim, 25 anos após ter sido escrita, a obra começa a emergir em momentos históricos tão determinantes como a Primavera dos Povos."

Mas este simbolismo não se esgotou nas efervescências do século XIX. Como Pedro Amaral sublinha, a 9ª Sinfonia de Beethoven continua a ser uma das obras mais tocadas de todo o repertório sinfónico; em 1972, a emblemática melodia do quarto andamento torna-se hino da Europa e, em 1985, hino da União Europeia. "É uma obra portentosa, que aponta caminhos estéticos, filosóficos e sociais. A arte não pode salvar o mundo, mas pode apontar caminhos, elevando-se como exemplo de humanismo e de fraternidade."

Na Gulbenkian, o maestro terá em palco, suspensos sob a sua direção musical, mais de 100 intérpretes, todos bem cientes do desafio: "É uma obra de grande exigência técnica e artística, pela complexidade da escrita, pela extensão e pelos meios que envolve, sendo a primeira sinfonia, na história da música, que junta à orquestra a voz humana."

Na Gulbenkian, ouviremos a Orquestra para a Paz, formada especificamente para este evento, e que tem duas particularidades: por um lado, junta em palco músicos de 13 diferentes nacionalidades, oriundos, em muitos casos, de países atualmente conflituantes, e que, pela força do exemplo, nos mostram o que poderia ser um projeto de paz em prol de um bem comum; por outro lado, a orquestra reúne no mesmo palco, lado a lado, grandes músicos veteranos, no topo das suas carreiras, e jovens ainda estudantes que representam a imprescindível renovação geracional. A eles juntar-se-ão o coro Voces Caelestes, principalmente composto por membros do Coro Gulbenkian e do Teatro Nacional de São Carlos.

Pedro Amaral destaca ainda as atuações de quatro notáveis solistas: Susana Gaspar (soprano), Cátia Moreso (mezzo-soprano), Marco Alves dos Santos (tenor) e o barítono André Henriques.

Este concerto, recorda ainda o maestro, "vem na sequência de um outro, que dirigi no ano passado, em Milão, no Teatro alla Scala, com obras de compositores da antiga URSS: Chostakovich, Gubaidulina e Arvo Pärt. A guerra tinha rebentado na Europa, com a invasão da Ucrânia, três meses antes, e pairava um certo receio sobre as reações possíveis, quando tudo o que era russo corria o risco de ser cancelado. Todos, no entanto, entenderam o apelo à Paz e o concerto, no quadro do Festival Milano Musica, constituiu um enorme sucesso, porque a música fala uma linguagem universal."

O que o maestro teme é um mundo em que a desumanização do Outro irrompe quotidianamente no espaço público. A educação pela arte parece não ter cumprido a sua missão e o papel da grande música diminui na vida de cidadãos cada vez mais dispersos: "Nos séculos XVIII e XIX, a música mantinha uma importante função social - na vida doméstica das classes privilegiadas como na ópera de grande apelo popular."

"Ainda no século XX, até à generalização da televisão, a música desempenhou um papel central em momentos capitais da vida coletiva."

E ilustra, recordando o poder mobilizador de uma obra como a Sinfonia Leninegrado, de Chostakovich, quer na Rússia invadida pelo Exército Nazi, quer no Ocidente, para onde a partitura foi levada em microfilme, passando por Teerão, da lá para Londres, até chegar a Nova Iorque, onde teve a sua estreia norte-americana sob a direção de Arturo Toscanini. Hoje, paradoxalmente, com meios de transmissão infinitamente mais simples e instantâneos, Pedro Amaral não imagina que uma grande obra sinfónica pudesse assumir uma tal presença na vida de sociedades cada vez mais atomizadas e dispersas numa miríade de individualismos.

Se a "Alegria, bela centelha dos Deuses", nos versos de Schiller e na música de Beethoven, acender algumas luzes onde antes apenas havia indiferença, este concerto terá cumprido a sua missão.

dnot@dn.pt

Publicado em 06.12.2023